Se você leu nosso artigo "Cinco sinais de que o RH da sua empresa está indo na contramão", provavelmente ficou curioso com o tema da relação perigosa entre metas e remuneração. É um tema sobre o qual falamos muito com clientes e prospects, e em que temos uma opinião muito forte. Neste artigo, queremos dar um pouco mais de cor à discussão, e fomentar o debate saudável do tema dentro das empresas.
O que é ligar metas e remuneração?
Quando falamos sobre ligar metas e remuneração (geralmente bônus) de maneira direta, nos referimos à insistência de algumas empresas em ligar o batimento de metas à remuneração de maneira matemática.
Por exemplo: Roberto é gestor de marketing da empresa Acme, e tinha como meta para 2016 levar o market share da empresa a 35% (a partir dos atuais 30%). No fim do ano, apurou-se que o market share da empresa era de 34%, ou seja, que Roberto bateu 80% da sua meta. O RH pegou os 80%, comparou-os com a tabela de PLR da empresa e viu que a regra é que quando um funcionário bate 80% de sua meta, ele ganha 2 salários mensais de bônus.
Nosso objetivo com esse artigo é mostrar diversos exemplos práticos que ilustram como é complexa e pouco produtiva essa prática. Esperamos que o formato (praticamente uma fábula da empresa fictícia Acme) torne mais clara nossa visão de que ligar diretamente metas e remuneração é péssimo para a enorme maioria das empresas.
5 razões pelas quais não faz sentido ligar diretamente metas e remuneração
1) Porque % de batimento de meta nem sempre é sinônimo de performance
Um exemplo que temos usado muito: Hermes e Renato são vendedores da empresa Acme e têm ambos como meta vender R$ 100 mil em 2016. Ao fim do ano, Hermes e Renato apuram suas vendas do ano e fecham suas metas com R$ 90 mil em vendas, ou seja, batem 90% de suas metas.
Faz sentido que ganhem a mesma coisa?
Agora vamos adicionar um grau de complexidade à decisão: Hermes cobre o setor de construção civil, e Renato o setor de agronegócio. Em 2016, aproximadamente 5 mil construtoras e incorporadoras fecharam suas portas em meio a uma grave crise impulsionada por desemprego e juros altíssimos. No mesmo ano, o setor de agronegócio passou bem pela crise: o real desvalorizado tornou os produtos agrícolas brasileiros mais baratos no mercado estrangeiro, o que potencializou as exportações do setor aos países desenvolvidos. Dado esse cenário, Hermes teve um ano dificílimo, e mesmo assim bateu 90% da sua meta. Virou incontáveis noites, procurou novos clientes no interior do Brasil, e até conseguiu alguns clientes na Argentina, país que vive um momento mais ameno. Renato, por sua vez, teve um ano bastante típico: vendeu para sua carteira tradicional de clientes, sem grandes acrobacias.
E agora, faz sentido que ganhem a mesma coisa? Mais do que isso: se pagarmos a mesma coisa aos dois, estamos sendo meritocráticos? Estamos reforçando os comportamentos corretos nas pessoas?
Meu ponto aqui é que tentar medir performance com base em uma simples continha matemática raramente produz resultados justos. O “modelo matemático” de performance é daqueles multi-variados, impossíveis de se prever prescritivamente. O tipo de modelo, vale ressaltar, em que o cérebro humano é muito bom (e muito melhor do que qualquer computador).
Ademais, avaliar performance é o trabalho do gestor de pessoas. Se acharmos que uma formulinha matemática substitui o trabalho de um gestor, em alguns poucos anos vamos com certeza perder nosso emprego para um computador. Eu duvido muito disso.
2) Porque complica demais o processo de planejamento das metas e cria bizarrices
Se você concordou comigo que o exemplo anterior, do Hermes e do Renato, é longe de trivial, você também concorda comigo que se queremos ligar diretamente % de batimento de metas e remuneração teremos que ser muito mais precisos na “contratação" das metas. Talvez se tivéssemos previsto que o ano do Hermes seria muito mais difícil do que o ano do Renato, poderíamos ter dado ao primeiro uma meta mais baixa, tipo uns R$ 60 mil, que poderia tornar a conta mais justa.
Assim, Hermes com a sua meta de vender R$ 60 mil e Renato com a sua meta de R$ 100 mil estariam jogando um jogo justo e equilibrado.
E como podemos chegar a essa conta?
Para esse caso, a empresa pode contratar uma consultoria econômica e pedir a ela que faça projeções sobre as perspectivas de cada setor (crescimento, margens de lucro entre outros indicadores para o ano), e a partir deles pode ser feita uma estimativa. A empresa deve fazer uma série de reuniões e validações das metas contratadas, e melhor ainda, criar uma área interna de “performance” cuja principal responsabilidade será ter certeza de que todos possuam metas “justas”, que levem em conta todas as nuances de cada função. Assim, com as metas corretas, minimizamos a chance de termos um bônus relacionado às metas injusto.
Mas e se mesmo assim o CEO da empresa tiver um padrinho de casamento que é CEO de uma empresa de agronegócio, o que pode ajudar muito a vida do Renato? Podemos então estabelecer que clientes indicados internamente sejam alocados aos vendedores com base em um “carrossel” que torne as indicações mais justas. Assim, se o CEO quiser indicar um negócio praticamente fechado à área de vendas, pode pedir ao diretor de vendas de quem é a vez no carrossel, e proceder assim com sua “indicação”. Claro que faz muito mais sentido que o próprio Renato atenda aos clientes do agronegócio, dado seu grande expertise e relacionamentos no setor. Mas não podemos ser injustos certo?
3) Porque torna o processo mais rígido e a empresa, por consequência, menos ágil
E se, no meio do ano, o Presidente do Brasil cai de amores com o setor de construção civil (que ele entende ser crucial para a retomada do crescimento econômico do nosso país) e outorga uma nova Medida Provisória que diz que todas as construtoras e incorporadoras não precisarão pagar mais impostos e que, além disso, receberão empréstimos a custo zero do BNDES?
Renato, que tinha uma meta de R$ 60 mil, agora pode ser agraciado com um segundo semestre excelente. Se ele vender R$ 80 mil com uma meta de R$ 60 mil, vai ter batido 133% da sua meta, e vai ganhar sem dúvida um bônus mais agressivo do que Hermes. Isso é meritocrático?
Não passa a fazer sentido, então, um ritual que calibração das metas em Junho? Podem ser trazidos todos os consultores externos de economia, e refeitas as contas em função de novas realidades econômicas do país, certo? Excelente, pois assim damos mais trabalho à nossa recém-criada área de "performance”.
Por outro lado, o que acontece se em setembro, um pouco depois da calibração semi-anual de metas, o Hermes recebe uma oferta da área de Operações da empresa, onde, ele acha, fará um trabalho mais interessante, aprenderá coisas novas e estará mais perto da sua paixão: a engenharia?
Ele deixa suas metas para trás e contrata novas metas?
Ora, muito fácil: Hermes receberá um bônus em função da média ponderada do seu atingimento de metas na área antiga, que contará por 8 meses e alguns dias, e da área nova, que contará por 3 meses e alguns dias. Uma simples equação:
% de atingimento do ano = (% de atingimento da função antiga x fator de ponderação i) + (% de atingimento da função nova x fator de ponderação ii)
Onde:
Fator de ponderação i e ii = dias corridos na função i e ii / 365
Aí o Hermes se informa dessa conta e fica um pouco preocupado: ele estava trabalhando em um negócio enorme com a construtora Tabajara, e o negócio estava marcado para sair depois de 25 dias da sua troca de função. Hermes apresentou o novo vendedor, Dimas, que o substituirá, ao pessoal da Tabajara, e Dimas ficará apenas imbuído de assinar na linha pontilhada. Ou seja, a % de atingimento das metas de Hermes na semana de sua troca não refletirão o importante trabalho que ele fez com no grande negócio.
Ora, mas ele terá a nova função para bater metas nos meses restantes do ano, certo? Mais ou menos: os 3 meses do ano são muito fracos na área de Operações, pois o ano fiscal já acabou para a matriz, e nenhum projeto sai do forno na época.
O que fazemos? Ajustamos a fórmula no caso a caso? Deixamos o Hermes com as metas da função passada (se sim, qual a “linha de corte” a partir da qual isso acontece?) E se a mudança fosse em abril, o que aconteceria?
Então a área de performance da empresa passa a escrever um grande manual, de umas 230 páginas, tentando prever todos os possíveis casos de exceção que podem ocorrer na contabilização das metas para o bônus.
4) Porque torna “aceitável” não bater metas
Agora vamos imaginar que na área administrativa da Acme há um analista chamado Toninho. O Toninho, diferentemente do Hermes e do Renato (que estão na área comercial, portanto têm remuneração variável mais agressiva), tem bônus máximo possível é de 2 salários no fim do ano.
Agora vamos imaginar que o Toninho chega em Setembro, e percebe que claramente ele não vai conseguir bater a meta dele, de reduzir em 40% o tempo médio de processamento de um pedido da Acme (Toninho está no centro de serviços compartilhados). Além de saber que não vai bater sua meta (ele só conseguiu reduzir o tempo em 10% até agora, e não vê muito bem como reduzir o tempo ainda mais), Toninho também sabe que não vai ganhar um bônus: ele só ganharia alguma coisa se batesse pelo menos 80% da meta. Assim, Toninho pensa: eu, me esforçar pra melhorar meu resultado nessa meta? Pra quê? Não vou ganhar bônus mesmo... Vou correr e correr atrás da meta pra bater 75% dela e ficar a ver navios? Prefiro ficar tranquilo.
Ou seja, metas diretamente associadas a bônus criam um contrato implícito que diz que a decisão de bater ou não meta é do funcionário: quem perde é ele se não bater a meta - quem ganha é ele se batê-la. O fato de Toninho não levar nada pra casa caso não bata 80% da meta faz com que ele se sinta “no direito” de não bater a meta.
5) Porque mata a inovação
Quando se comunicam com a empresa, os executivos da Acme falam muito de inovação. Três deles inclusive foram em uma missão de empresas brasileiras ao Vale do Silício, onde visitaram as sedes de empresas como Google, LinkedIn e Tesla. Ao voltarem, criaram um “comitê de inovação” com pessoas de várias áreas, e bradam a quem quiser ouvir que a Acme precisa se tornar uma empresa inovadora se quiser sobreviver no longo prazo. Um deles até comprou um Apple Watch e passou a manter exemplares da revista Wired em sua sala.
Enquanto isso Toninho, nosso amigo do CSC, recebeu uma meta de melhorar em 50% o tempo de resposta de pedidos do seu chefe. Mas não aceitou-a: negociou, esperneou e choramingou ao seu chefe durante algumas semanas argumentando que os 50% eram excessivos e que assim “seria muito difícil levar algum dinheiro para casa no bônus”.
Depois de muito leva e traz, Toninho e seu supervisor fecharam a meta em 40% de redução de lead time. Toninho ficou mais contente: sabe que se "apertar alguns parafusos” no seu dia a dia (quiça cortar o café prolongado que toma com os colegas na cafeteria da empresa) consegue fazer o processo mais rápido e bater a meta: reduzir de 10 para 6 dias o tempo que demora para um pedido dos clientes da Acme ser processado e faturado.
O que não se fala é que talvez se Toninho não tivesse sua remuneração ligada diretamente ao % de atingimento dessa meta ele toparia desengavetar uma idéia que cogita de tempos em tempos: aprender a escrever programas de computador que automatizariam suas rotinas no Excel (sua principal ferramenta de trabalho). Com um pouco de código VBA, Toninho poderia reduzir drasticamente o tempo do processo (sua estimativa é que poderia levar o tempo à casa dos 2 dias). No entanto, Toninho pensa “eu não sou pago pra isso": sabe que de nada adiantaria reduzir tão drasticamente o tempo: o máximo que ele pode ganhar é 2 salários mais um multiplicador de meio salário caso atinja e exceda os 40% de redução.
Perguntas frequentes
Tentamos ressaltar diversas nuances muitas vezes ignoradas do processo de derivação de decisões de remuneração a partir da % de atingimento de metas. Elas vão suscitar diversas perguntas, e por isso tentamos adiantar algumas delas aqui:
Vocês são contra a meritocracia?
De maneira nenhuma. Somos da crença de que a meritocracia é a única forma sustentável de longo prazo de se tocar uma empresa (e francamente qualquer tipo de organização). Nunca conhecemos uma empresa sustentável (em termos de crescimento, margens e satisfação do cliente) que não seja mais ou menos meritocrática. Por outro lado, há vários exemplos opostos, como governos e autarquias.
E como posso praticar a meritocracia sem essa ligação direta entre metas e bônus?
Não é preciso ligar metas e remuneração de maneira direta para praticar a meritocracia.
Em primeiro lugar, é necessária uma prática bem feita de metas. É necessário que gestores e funcionários estabeleçam metas relevantes, alinhadas com o negócio e ambiciosas. Após combinarem metas, precisam acompanhá-las semanalmente (ou quinzenalmente) em reuniões de time ou 1:1s, passando por cada uma das metas, seu status, próximos passos, etc. O funcionário precisa ser responsável pela meta, e quem garante isso é o seu gestor direto. Por fim, gestor e funcionário precisam avaliar de maneira honesta e transparente se as metas foram batidas.
A ligação direta entre metas e remuneração atrapalha todos esses passos para a boa gestão de metas: faz com que seja impossível construir as metas em conjunto com o funcionário (por afetarem $, elas tendem a ser impostas de cima para baixo); faz com que as metas sejam negociadas para baixo; fazem o funcionário "ter medo" de tratar as metas que não estão sendo batidas; faz gestores serem menos sinceros na avaliação dos resultados (vemos muitos gestores de empresas com menos cultura de performance tendo medo de avaliar corretamente os resultados com medo de "prejudicar" o funcionário).
A partir de uma prática bem feita de gestão por metas, fica muito fácil para a empresa quantificar quem produziu mais resultados e quem produziu menos resultados. O gestor terá essa "avaliação" pronta em sua cabeça de maneira intuitiva.
Assim, fica fácil dar mais (oportunidades, aumentos, promoções, responsabilidades) aos funcionários que geraram mais resultados.
A falta da ligação matemática não torna o processo subjetivo?
De maneira nenhuma: se o gestor fez seu papel durante o ano, ele terá amplas evidências de suas decisões e avaliações de performance. É papel dele construir essas evidências, e ele deve ser responsável por isso.
Gestão de pessoas é um tema humano, se sempre terá um alto grau de subjetividade. É função da sua liderança fazer esse julgamento da maneira mais correta possível com base em evidências. (Nós vimos aqui que metas complicadas e matematicamente ligadas ao bônus têm outras nuances de subjetividade e exigem dos líderes muito julgamento na fase de contratação de metas.)
Para reduzir essa subjetividade, acreditamos que os gestores devam avaliar performance com base nos resultados atingidos, e esse processo deve ser informado sim pelas metas. Mas em última instância, quem dirá se Hermes ou Renato tiveram mais ou menos performance serão os gestores, após avaliarem em conjunto seus números, a economia do País, os negócios gerados pelo CEO da empresa, e todos os outros fatores observados durante o ano. É essa sua função.
Também acreditamos muito num processo de avaliação colegiada, onde o gestor leva suas "propostas" de avaliação e defende-as perante seus pares, com evidências coletadas durante o ano. Quem trouxer menos evidências vai naturalmente ser prejudicado (assim como seus liderados), o que reforçará a necessidade das práticas.
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